Portugal, país muitas vezes lembrado pelo seu papel no comércio transatlântico de escravos, enfrenta uma nova realidade que está forçando uma revisão profunda de sua história. Descobertas recentes em escavações arqueológicas na região do Monte do Vale de Lachique, ao sul de Lisboa, estão lançando luz sobre um aspecto pouco conhecido e frequentemente negligenciado da história de Portugal: a escravidão africana no coração da metrópole.
Até então, a imagem da escravidão portuguesa era predominantemente associada às colônias, especialmente o Brasil colonial, onde estima-se que tenham sido trazidos 5,8 milhões de indivíduos escravizados entre os séculos 16 e 19. Contudo, essa narrativa está mudando à medida que pesquisadores desvendam evidências da escravidão africana em solo português.
O arqueólogo Rui Gomes Coelho, da Universidade de Durham, liderou a equipe que fez essas notáveis descobertas. No Monte do Vale de Lachique, vestígios de ocupações datadas dos séculos 16 e 17 apontam para a presença de escravizados africanos na metrópole portuguesa, participando de atividades como agricultura e outras ocupações.
Essas descobertas revelam que a escravidão não estava limitada às colônias, mas se estendia ao coração de Portugal. Objetos encontrados na área, que remontam ao final do século 15 e início do século 16, indicam a influência desses escravizados na construção da região.
Além disso, o fato de que a região ficou desabitada por mais de mil anos antes desse período sugere que a ocupação moderna é creditada aos escravizados. Esse achado arqueológico também corrobora relatos documentais que mencionam a limpeza de áreas “de mato” para fins agrícolas, graças ao trabalho de escravizados.
Esta descoberta revela um fenômeno de colonização interna na Europa, uma história que, até recentemente, era largamente desconhecida. A história das populações escravizadas e seus descendentes em Portugal é uma narrativa que permaneceu nas margens da história oficial do país. No entanto, a arqueologia está preenchendo as lacunas e permitindo que compreendamos melhor essa parte essencial da história de Portugal.
O historiador Renato Pinto Venancio, autor do livro ‘Cativos do Reino: a circulação de escravos entre Portugal e Brasil’, enfatiza a importância das pesquisas arqueológicas, que complementam as investigações históricas. A história de Portugal, que remonta à Idade Média, foi marcada por confrontos com os muçulmanos e pela escravidão dos prisioneiros dessas guerras. No século 15, o país começou a construir seu vasto império colonial, o que levou ao tráfico de escravos de regiões africanas subsaarianas.
Essas descobertas arqueológicas são um lembrete de que a escravidão em Portugal não estava confinada às colônias, mas fazia parte da vida cotidiana no país. Embora a escravidão em Portugal possa ter tido diferenças em relação ao sistema escravista no Brasil, ela desempenhou um papel fundamental na transformação do trabalho, na consolidação do latifúndio e na formação das comunidades camponesas no sul de Portugal.
Este é um lembrete importante de que a escravidão não foi uma característica exclusiva das colônias, mas também existiu na Europa. A história de Portugal está repleta de nuances que merecem ser exploradas, analisadas e debatidas. As recentes descobertas arqueológicas abrem uma janela para uma parte fundamental da história do país que precisa ser reconhecida e compreendida.