Zolpidem no Brasil: A Epidemia Silenciosa de Comprimidos

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Nos últimos anos, uma sinistra “competição” vem silenciosamente tomando conta dos consultórios de psiquiatras e especialistas em medicina do sono em terras brasileiras: quem atendeu o paciente que ousou engolir a maior quantidade de comprimidos de Zolpidem num único e desesperado dia.

O medicamento, destinado a tratar a insônia, tem ocupado um lugar de destaque na última década, graças a uma combinação de fatores revelada ao longo desta reportagem: a facilidade de prescrição médica e um apelo quase irresistível para um problema tão comum – a dificuldade de dormir.

Alguns médicos consultados pela BBC News Brasil compartilharam histórias alarmantes de pacientes que ingeriram até 300 comprimidos de Zolpidem em um único dia. O psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Programa de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq-FMUSP), relatou essas experiências chocantes e comparou a situação no Brasil ao cenário de abuso de opioides nos Estados Unidos.

A neurologista Dalva Poyares, do Instituto do Sono em São Paulo, classifica a situação como um problema de saúde pública, destacando o crescimento alarmante do consumo de Zolpidem. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as vendas dessa medicação dispararam de 13,6 milhões de caixas em 2018 para 23,3 milhões em 2020, um aumento de 71%.

O psiquiatra Lucas Spanemberg, do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), corroborou as preocupações de seus colegas, compartilhando histórias dramáticas de dependência do Zolpidem. Pacientes que tomavam dezenas de comprimidos em uma única noite eram uma realidade assustadora.

Entre os especialistas consultados, há um consenso claro sobre a necessidade de impor regulamentos mais rigorosos às vendas de Zolpidem no país e de aumentar a conscientização sobre o uso apropriado tanto entre os médicos quanto entre o público em geral.

O Declínio da Patente

O Zolpidem recebeu a aprovação da Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos em 1992. No Brasil, o medicamento está disponível desde meados da década de 1990, mas só começou a chamar a atenção quando a patente expirou em 2007, permitindo que outras empresas o produzissem como genérico.

Isso desencadeou uma enxurrada de fabricantes, acompanhada por uma intensa campanha de marketing voltada tanto para médicos quanto para consumidores. O medicamento que antes tinha um preço mais elevado e passava despercebido agora estava ao alcance de todos.

Receituário Menos Restrito

Um aspecto crucial do aumento no consumo de Zolpidem no Brasil está relacionado às regras de prescrição e compra. A legislação de saúde do país possui diferentes tipos de receitas médicas, variando de acordo com a classificação da substância farmacêutica.

O grupo B1, que inclui substâncias psicotrópicas, contém o Zolpidem. Inicialmente, isso significava que a compra estava condicionada a uma prescrição azul de controle especial, que era emitida em duas vias e tinha restrições significativas.

No entanto, uma mudança na legislação em 2001 pela recém-criada Anvisa relaxou essas regras. A partir de então, preparações medicamentosas à base de Zolpidem com menos de 10 miligramas por comprimido podiam ser vendidas com uma receita de controle especial, mais fácil de obter. Essa mudança permitiu que qualquer médico receitasse o Zolpidem com relativa facilidade, tornando-o amplamente disponível.

O Apelo Irresistível

Além do fácil acesso, outro fator que contribuiu para o aumento do interesse pelo Zolpidem foi a promessa de um sono profundo e revigorante sem os efeitos colaterais prolongados dos benzodiazepínicos, uma classe de medicamentos que tem efeitos mais duradouros e é mais restrita.

Os benzodiazepínicos afetam o sistema nervoso central de forma ampla e têm uma ação prolongada, que pode durar várias horas. Por outro lado, as drogas Z, como o Zolpidem, agem de maneira mais específica e com duração mais curta, induzindo o sono rapidamente e permitindo que o paciente acorde sem sentir sonolência.

No entanto, a promessa de que essas drogas não causariam tolerância ou dependência, feita quando foram aprovadas, provou ser enganosa. Os receptores cerebrais que o Zolpidem afeta se tornam menos sensíveis ao medicamento com o tempo, levando os pacientes a aumentar as doses para obter o mesmo efeito.

Em Busca de Soluções

Diante desse cenário complexo, especialistas concordam que o uso racional do Zolpidem requer uma série de ações. É essencial aumentar o controle sobre sua prescrição e venda, e conscientizar tanto médicos quanto pacientes sobre os riscos associados ao uso prolongado. O mercado paralelo de venda de medicamentos também deve ser combatido.

Além disso, é fundamental lembrar que nenhum medicamento pode resolver permanentemente problemas de insônia. A abordagem mais eficaz envolve uma combinação de tratamento médico e medidas de higiene do sono, como limitar o uso de telas eletrônicas antes de dormir e restringir o consumo de estimulantes.

A mensagem final dos especialistas é clara: não se pode medicalizar o sono, e o uso responsável de medicamentos para insônia deve ser acompanhado de perto por profissionais de saúde qualificados.

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